Oito poemas de Florbela Espanca

ANGÚSTIA

Tortura do pensar! Triste lamento!

Quem nos dera calar a tua voz!

Quem nos dera cá dentro, muito a sós,

Estrangular a hidra num momento!

 

E não se quer pensar! … e o pensamento

Sempre a morder-nos bem, dentro de nós …

Querer apagar no céu – ó sonho atroz! –

O brilho duma estrela, com o vento! …

E não se apaga, não … nada se apaga!

Vem sempre rastejando como a vaga …

Vem sempre perguntando: “O que te resta? …”

Ah! não ser mais que o vago, o infinito!

Ser pedaço de gelo, ser granito,

Ser rugido de tigre na floresta!

-Florbela Espanca, em “Livro de Mágoas”

 

CONTO DE FADAS

Eu trago-te nas mãos o esquecimento

Das horas más que tens vivido, Amor!

E para as tuas chagas o unguento

Com que sarei a minha própria dor.

Os meus gestos são ondas de Sorrento…

Trago no nome as letras de uma flor…

Foi dos meus olhos garços que um pintor

Tirou a luz para pintar o vento…

Dou-te o que tenho: o astro que dormita,

O manto dos crepúsculos da tarde,

O sol que é d’oiro, a onda que palpita.

Dou-te comigo o mundo que Deus fez!

– Eu sou Aquela de quem tens saudade,

A Princesa do conto: “Era uma vez…”

-Florbela Espanca, em “Charneca em Flor”

 

DE JOELHOS

“Bendita seja a Mãe que te gerou.”

Bendito o leite que te fez crescer

Bendito o berço aonde te embalou

A tua ama, pra te adormecer!

Bendita essa canção que acalentou

Da tua vida o doce alvorecer …

Bendita seja a Lua, que inundou

De luz, a Terra, só para te ver …

Benditos sejam todos que te amarem,

As que em volta de ti ajoelharem

Numa grande paixão fervente e louca!

E se mais que eu, um dia, te quiser

Alguém, bendita seja essa Mulher,

Bendito seja o beijo dessa boca!!

-Florbela Espanca, em “Livro de Mágoas”

 

EU

Eu sou a que no mundo anda perdida,

Eu sou a que na vida não tem norte,

Sou a irmã do Sonho,e desta sorte

Sou a crucificada … a dolorida …

Sombra de névoa tênue e esvaecida,

E que o destino amargo, triste e forte,

Impele brutalmente para a morte!

Alma de luto sempre incompreendida!…

Sou aquela que passa e ninguém vê…

Sou a que chamam triste sem o ser…

Sou a que chora sem saber porquê…

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,

Alguém que veio ao mundo pra me ver,

E que nunca na vida me encontrou!

-Florbela Espanca

 

TÉDIO

Passo pálida e triste. Oiço dizer:

“Que branca que ela é! Parece morta!”

e eu que vou sonhando, vaga, absorta,

não tenho um gesto, ou um olhar sequer …

Que diga o mundo e a gente o que quiser!

– O que é que isso me faz? O que me importa? …

O frio que trago dentro gela e corta

Tudo que é sonho e graça na mulher!

O que é que me importa?! Essa tristeza

É menos dor intensa que frieza,

É um tédio profundo de viver!

E é tudo sempre o mesmo, eternamente …

O mesmo lago plácido, dormente …

E os dias, sempre os mesmos, a correr …

-Florbela Espanca, em “Livro de Mágoas”

 

Perdi os Meus Fantásticos Castelos

Perdi meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma…
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma…
– Tantos escolhos! Quem podia vê-los? –
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!

Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de ouro e pedrarias…

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas…
Sobre o meu coração pesam montanhas…
Olho assombrada as minhas mãos vazias…

-Florbela Espanca, in “A Mensageira das Violetas”

 

 

Os Versos que Te Fiz

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolências de veludos caros,
São como sedas brancas a arder…
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda…
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei…
E, nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

-Florbela Espanca, in “Livro de Sóror Saudade”

 

 

Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo …
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho … E não sou nada! …

-Florbela Espanca, in “Livro de Mágoas”